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segunda-feira, abril 02, 2007

Corpo que fica

Sentado em frente ao quadro o homem velho fumava seu charuto e observava num sono acordado aquela janela flutuante. A fumaça cobria a vista de uma névoa cinza fedida, transformando as cores num pastel padrão de cidade, podrão ar de subúrbio de megalópole, megalomaníaca e não tão menos megapsicótica. O homem era um cosmopólita consumidor assíduo do que as galerias vendiam como boa arte. O som era de silêncio de uma vitrola quebrada. Antes tocava algum jazz típico dos holywoodianos cinquentões ou quem sabe um clássico rotulado como clássico dos clássicos. Havia alí o que de bom se dizia nas bocas dos outros. A poltrona era feito um gato inflado com espinhos nas costas, ou um porco-espinho caduco, calvo, de espinhos moles. Nem oito nem oitenta, um meio-termo tedioso, acadêmico, político, sobre muro. Foram horas. O charuto queimava em ponta, dedo, punho, braço e cotovelos, aos minutos que se seguiam o homem se fumava e se fedia a fumaça de sua própria carcaça, duma fumaça que reproduzia e invadia a casa. O quadro permaneceu flutuando em arte abstrata de mínima tinta. Um vazio nem muito amarelo, nem muito vermelho, um alaranjado parecendo suco de laranja aguado ou um ovo de pinto mal chocado. A casa talvez fosse a galinha. Em outros tempos um bom vinho seria tragado como se tragam os fumos. O homem velho era só um velho homem com seus vícios de homem velho. Pensava. Imóvel. Reconhecia no quadro a distancia entre ambos. Trajava um bom terno da época que se vestia o verão à caráter da neve européia, com um chique conjunto de significados sociais em cada dobra , abotoamento, e direção do chapéu. Uma época em que os gestos traziam os sinais da gentileza e finura necessários pra se conquistar uma linda mulher. Aquele quadro era um autêntico mister contemporâneo disforme abstrato, descompromissado com a forma, feio e deselegante. Limpo ao ponto de ser clean, mínimo em suas palavras de linhas e manchas, metricamente menor que o Hai Kai e simbólicamente maior que o oceano. Aquelas gerações de obra e espectador permaneciam sendo fumadas alí naquela sala intoxicada de fumaça humana. O homem velho ia sublimando ao ponto que só existia da cabeça pra cima que, arregaladamente, continuava observando, espremendo a tinta entre as molduras. A tinta derretia e escorria pela parede cinza escura, criando formas no incêndio, além de sombras e fumaça. Ia embora a casa, tomada pelo charuto. O telhado e as paredes iam pra outro plano, em gases iam olhar de cima a cabeça e a tinta, intactas feito bruxaria. A cabeça do homem velho rolou, a tinta escorreu, e se encontraram na linha do assoalho onde ficava a porta. E alí ficaram se namorando, nunca tão supreendentemente próximas.

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