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domingo, fevereiro 18, 2007

Escrita Sensorial - Exp. I

Experiência de escrita sensorial 1 - musical
Escrito enquanto meu corpo reage aos estímulos musicais com as composições de Philip Glass

Uma caixa de retalhos de imagens, um progresso de meias metades e quartos inteiros de mínima música. Entrar num espaço sonoro com notas flutuando pelos campos minados de compassos aveludados e um tapete de três-por-quatro afiados em pontas de faca navalhando os músculos da mente. O meu corpo treme e só o que um se pensa. Os músculos da mente são o pensamento da cerne. Essa é a imagem que tenho em meu dedão do pé. olha para o seu lado oposto E aquela caixinha de música girando com a bailarina triste em cima... tempo Quer dançar? tempo Está tão calada. sorri Você é danada, me deixa aqui falando sozinho com minhas partes. tempo. baixa os olhos. sorri Não, não choro não. A vida é muito solitária mas não carece de pingar lágrimas. olha em volta Isso te inspira? Essas coisas em volta, essa foto de praia deserta na parede, esse livro do Deleuze na cabeceira, essa caixinha de música que você não pára de abrir e fechar só pra ver se um dia a menininha cai de tonta. Isso te cansa? Ficar aqui falando das minhas impressões enquanto você nem se mexe. tempo tempo É, não deve mesmo ser muito agradável. muito tempo Vou embora então. levanta, gira pelos cantos. diz Sabe qual a imagem que tenho no meu dedão do pé agora? É de uma bailarina, pode ser Isadora Duncan, girando numa praia, o vento batendo um perfume suave vindo de algum barco no mar. Lá eu te espero com um punhado de flores cheirosas, de cores vivas, sem espinhos, aveludadas como as notas musicais de uma minúscula música. Um minimalismo alí, o barco eu e as rosas. Você a areia e o mar. O Deleuze embala nossas teorias só. Talvez ele seja o mar que nos distancia. espera uma reação Que te faz girar com o vento e me faz ficar aqui ao alento e esperar. tempo Meu barco tá sem remo. Na verdade o barco tá sem mar e você é só um boneco de areia que se desmancha com o movimento do ventoar. não espera mais É engraçado como te vejo: um parado em movimento. sorri com um pingo de lágrima Já pensou em se mudar? pensa "talvez" Eu já, mas não sozinho. Essa vida mesmo com gente é muito solitária. Sem gente ela fica sem opção de solitude. A velha regra dos contrários. Um precisa do outro pra existir enquanto tal. Qualquer criança sabe disso, não preciso te convencer... percebe e não quer falar como o Deleuze eu aqui falando pra alimentar sua companhia e preencher a minha solidão... e você querendo ficar sozinha... entendi. A tagarelice toda... a praia, o mar, a música e o silêncio. chora com uma pontinha de sorriso A imagem que tenho agora em meu dedão do pé é a de amor constando com raiva, que eu mesmo precisava. tempo entre-dentes. choro pouco assumido Desses contrários Deleuze não disse não é mesmo? Da memória constando com aminésia, e a da vivice constando com a mortandade. volta pro começo. sempre acontece Uma caixa de retalhos de imagens é o que tenho em cada poro. Você me escuta? Você me escuta? Você me escuta ou grito esse tempo todo pra mim mesmo? olha embaçado Porque você não me responde? E essa música alta? E esse livro do Deleuze? Porque você não abre e procura alguma coisa relacionada a vida que levamos? Larga o travesseiro! Larga de se remexer pro umbigo. Você me escuta? Você me escuta? Você me escuta ou tudo isso eu falo pra mim mesmo? Você está aí? Quem está aqui? Bate no peito A moça... a moça... a sala com notas aveludadas voando e voando em compassos. Isso é música, esse espaço sonoro... isso é. Uma janela de sonhos balançando numa cortina leve. Logo eles se soltam! Me ajude a segurar! Sai daí! Pára de se remexer pro umbigo! desarruma uma cama vazia, só lençõis Cadê você? Cadê? Estava aqui agora mesmo... estava! estava! chora assumido. pega o livro do Deleuze e joga pela janela como um sonho que voa em páginas abertas lançando suas palavras para alguém perto ou longe pegar. deixa escapar da sala as notas musicais aveludadas transformando aquele espaço sonoro num súbito silêncio. enche as nunvens de compassos que pesam em chuva derramando as notas líquidas preenchendo os rios, os vales, as vias, os mares o solo e os cabelos molhados de mínima música. encostado num canto olha firme o seu dedão do pé e vê que ali, agora, estava apagado.