Certo
dia um corpo se encontrava fora de si, numa esquina de uma grande
cidade. O corpo estava fora do corpo. O corpo não se reconhecia,
permanecia, alí decapitado de sentidos, despecaminado de moral,
fraturado no mais desconexo sentido de si. Um corpo trocado, como se
o membro fosse o sexo, o sexo o cérebro e o cérebro o estômago.
Que ardia de fome. Mas a fome não era fome, talvez fosse saciedade.
Dor por estar saciado. Talvez. Talvez exista essa dor. E naquele
corpo a dor não era exatamente dor. A dor poderia parecer mais com
uma latência, um tempo adormecido, uma sensação de paralisia ou de
formigamento. Os sentidos não podiam ser mais os mesmos, não
naquele corpo. O corpo não era mais o mesmo, nem era corpo. Ou era?
Era de outro jeito. Como se o corpo tivesse parido a si mesmo em sua
não-semelhança, quase como se tivesse medo de si próprio. Um corpo
que quisesse fugir de si. Deve existir essa fobia de estar em você
mesmo, deve existir. Aquele corpo queria ser diferente, não-natural,
fora da ordem dos fatores, fora da ordem, fora da ordem social.
Aquele corpo estava se experimentando… E não seria ele, o corpo,
talvez a própria experiência de si? Como se partisse o corpo para
uma aventura transcendental sem sair daquela esquina cotidiana. As
esquinas proporcionam dessa experiência. Afinal, quantas não são
as encruzilhadas encrustadas na carne? Certo dia um corpo se
encontrava num lugar que nem reconhecia mais como esquina. Não
reconhecia mais nada, nem o seu mais sincero nu. Evaporou no pó da
cidade, foi inalado em alguma brasa de cigarro, escapamento de carro,
pulmão de velho ou criança, não sei… esse corpo agora é ar, e
só se movimenta em dias de ventania.
Das mudanças do corpo cabem as circunstâncias da vida. Cresço e, ao que amadureço, me escancaro. Aqui há minha porta aberta, onde parte o prolongamento de meus braços e pernas além do meu ego de ator e força circense. Partem minhas palavras em corpo, em carta, em viva poesia, mesmo se em prosa vier a narrativa. Sei que espiam e não deixam pistas, mas, se puderem, comentem... e deixem um pouco da sua carne poética em minha cerne criativa. Experimentem...
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